Sunday, October 15, 2006

The Gift :: Vinyl... Entrevista

E agora?

Candidatos sérios ao título de projecto português mais importante do ano que corre, os Gift fazem, na On, o balanço de uma existência atribulada pela voz de Nuno Gonçalves e Sónia Tavares, compositor e vocalista, respectivamente.
Confessam-se, analisam-se, e fazem planos à sombra de uma palmeira, numa tarde de fim de Agosto em Lisboa. São o grupo português, de Alcobaça, de que toda a gente fala e chegaram recentemente ao Disco de Ouro, tendo partindo de um regime de edição de autor, com dinheiro do próprio bolso. Não chegaram a acordo quanto a ser este processo um fenómeno, mas sabem o que querem e Portugal não é suficiente.


Ao olharem para trás, que diferenças principais encontram entre os Gift de "Digital Atmosphere"e os Gift de hoje, depois de "Vinyl", o grupo de que toda a gente fala?
Nuno Gonçalves –
Como banda, sentimos que existe mais respeito por nós. O curioso é que estamos cada vez mais empenhados nisto. Vimos que, afinal, tínhamos razão, as coisas não eram tão escuras quanto ao princípio nos pareciam. Como pessoas estamos muito felizes. Os Gift são a nossa vida, são aquilo que sempre quisemos fazer. Como projecto é aqui que isto vai começar. O que ficou para trás o que ficou para trás foi uma longa caminhada para nos pormos no pelotão.


Disseste, literalmente, que afinal tinham razão. O que é que isso significa?
N.G. – Afinal, valeu mesmo a pena estar a trabalhar para tudo isto. Mesmo tendo dez ou quinze pessoas a ver os concertos da "Digital Atmosphre Tour", apesar de todo o trabalho envolvido. Muitas vezes chegamos a pensar "Será que o problema é nosso? Será que estamos ao contrário de toda a gente?". Muitas vezes chegas ao quarto e o pensamento é esse – "Será que a nossa música vale alguma coisa? Será que temos jeito para isto ou merecemos fazer outra coisa qualquer?". Ao fim de quatro anos vemos que tínhamos razão na aposta. A nossa música tem público e acho que a partir de agora é que vamos começar a ter gozo no que estamos a fazer.

Apesar de acreditar que editaram "Vinyl" com a perfeita convicção de que era um excelente disco, o que é que pensam que o os efectivamente em contacto com tanta gente, facto pouco comum quando a música portuguesa é mais ousada que o prato habitual?
N.G. –
A digressão. Sem dúvida nenhuma. Quero dizer, acho que isto, neste momento, é um fenómeno. Só posso incluir isto na categoria dos fenómenos. As razões? 50 por cento do sucesso devesse à digressão; a nossa atitude; a nossa humildade; a nossa ingenuidade; a nossa maneira de sermos. E a música. Não podemos esquecer-nos que a música, apesar de ser às vezes difícil de ouvir para certas pessoas, foi levada a todas as cidades de uma forma simples. Temos, também, uma estratégia minimamente cautelosa.


Continuam a ser vocês a controlar toda a vossa existência enquanto grupo.
N.G. –
Sim, tudo. Se calhar essa é outra das razões par ao que está a acontecer. Mas é como te digo: isto é um fenómeno e os fenómenos devem ser estudados quando terminam. Neste momento, estamos no "durante". Semana a semana, hora a hora, vão acontecendo coisas que tornam isto melhor. Lembro- me de uma semana concreta em que, ao mesmo tempo, começaram os contactos com as distribuidoras, fomos convidados para os concertos dos Divine Comedy, vendemos a segunda edição de "Vinyl"… Em Maio fomos convidados para quase todas as Queimas das Fitas. Em Junho seguiram os convites para os festivais… São coisas que nos fazem perceber que as coisas estão a acontecer. Mas nem por isso esses acontecimentos nos fazem perder a postura, aquela capacidade de análise fria que nos faz pensar "o que é que ainda + podemos fazer?". Não convém largar valores que sempre respeitámos e defendemos, como a luta pela independência, apesar de estarmos agora no patamar do Disco de Ouro.
Sónia Tavares – Não concordo nada contigo. Acho que não se pode incluir os Gift, mais os 20 mil discos, no meio dos fenómenos. Um fenómeno são 250 mil discos…
N.G. – Não é só o número de vendas, mas esse número aliado ao estilo de música que praticamos.
S.T. – Todos os convites surgiram por causa daquilo que a música é. Ao contrário do que se possa pensar, a música dos Gift não é nada complicada, é muito fácil de ouvir. Chega a qualquer pessoa. Tudo o que nos aconteceu surgiu na sequência de termos sempre batalhado para levar a nossa música ao maior número possível de sítios. Não foram apenas 20 mil pessoas que viram os Gift, mas muito mais, como era a nossa intenção.
N.G. – Falaste numa coisa importante: porque é que outras bandas, se calhar com um produto mais fácil, não conseguem? Lembro-me que, em Dezembro, quando começámos os contactos para a digressão, os nossos cachets eram feitos, numa primeira fase, para cobrir os custos, e, numa segunda fase, para perdermos o mínimo possível. Numa terceira fase, por querermos tanto tocar, a atitude era "não nos importamos de perder bastante, é um investimento". Acho que é essa a ideia que falta a músicos novos que andam por aí. Só por verem o seu vídeo na televisão ou o seu disco nas lojas, pensam que são artistas e podem exagerar nos cachets. Nunca fizemos isso.


Sendo o Nuno o principal mentor da música dos Gift, que preocupações tens quando trabalhas numa canção que, provavelmente, irá a posteriori ser transformada por mais de uma dezena de pessoas? Pensas nisso quando fazes música?
N.G. – Obviamente que penso, quando as coisas começam num simples som de piano, ou de xilofone, ou de outra coisa qualquer. Tento nessa altura, imaginar o tipo de estética que essa música pode ter. Antes de "Vinyl", compunha para cordas sem saber o que os músicos sabiam tocar. Hoje em dia, já sei do que são capazes os músicos que tocam connosco. Já lhes dou maior liberdade para experimentar, coisa que não aconteceu no "Vinyl". Hoje em dia, já penso nas pessoas que vão tocar as músicas e tenho a vida mais facilitada. A colaboração deles é outro factor que contribuiu para que a coisa tenha funcionado. Em termos de composição, gosto de complicar as coisas, não sou nada simplista. A minha ideia é de grandiloquência.

Se é verdade que a música dos Gift é feita com o objectivo que servir de suporte à voz da Sónia, como é que tu, Sónia, te sentes no papel de quem é destinatário e, ao mesmo tempo, intérprete das canções?
S.T. –
O Nuno está com excesso de produtividade. Agora além de fazer as músicas, arranja-as, pe a letra, faz a melodia das vozes e canta as músicas… o meu papel está cada vez mais reduzido. Qualquer dia despede-me. A nossa forma de trabalhar, antes, era: ele dava-me uma cassete com a música e eu só lha devolvia quando tivesse o produto final na mão – voz letra e melodia. O que acontece agora é que o Nuno trabalha, por exemplo, entre a meia noite e as cinco da manhã, aparece e diz: "já aqui está tudo feito". Mas acho que a música não é feita para mim, mas para os Gift. Assumo cada personagem, a música não é feita para a Sónia. No disco havia ambientes que ele queria criar e eu tive que adaptar-me.
N.G. – Sim, quando apresento o produto completamente feito a Sónia acaba por adaptar-se. Mas há casos como "First Chapter" e "How de End Always End", que vivem essencialmente da voz e que a Sónia conseguiu captar. O "First Chapter" tem esse nome porque a Sónia gravou a cassete, deu-ma, e quando falei com ela, disse-lhe que aquele era o primeiro capítulo da história dos Gift. Era mesmo aquilo. A partir daí tem sempre vindo a subir.

Sei não estar errado quando digo que, de "Digital Atmosphere" para "Vinyl", houve um processo de reformulação musical, de transformação das canções em algo mais quente e, por ventura, orgânico. Se é que o tempo disponível já permitiu pensar nisso, o que é que vem a seguir, em termos de novo álbum dos Gift?
N.G. –
Cada vez uma coisa mais orgânica, até porque, quanto a mim, as máquinas estão cada vez mais orgânicas. Conseguem passar sentimentos como o violino. A diferença é que um tem uma postura mais bonita e o outro tem uma postura mais suja. Em termos de futuro, tenho feito várias coisas, tenho pensado em coisas para novas canções, além de pensar em soluções para as canções que temos. O espectáculo do Lux (N.R.: ver reportagem nas páginas de concertos) foi muito bom para nós, deu para voltarmos a trabalharmos, montar um espectáculo novo, para no outro dia voltarmos ao antigo. Acho importante, quando se parte para um disco, ouvir muita coisa que vai sendo entretanto feita. Lembro- me que passámos o ano de 1997 a ouvir os Pigeonhead, o "Homogenic" da Björk, a Mimi, uma data de discos que nos transmitiram muito. Já que não sabemos música, temos que saber o que os nossos professores estão a ditar, quais são as regras. Podemos, a partir daí, captar "flashes" criativos que nos podem ajudar. Esse processo ainda não está em curso porque temos muito pouco tempo.


Como está então composta a essa agenda?
N.G. – Vamos até Dezembro com a "Vinyl Tour". A minha primeira ideia era fechar a digressão e Setembro ou Novembro e fazer, em Dezembro, seis datas acústicas. Não como aparecemos no Lux, mas com cinco ou seis convidados, percussionistas dos quatro cantos do mundo. Isso agradava-me muito e, se calhar, só vou ter tempo para isso daqui a um ano. Em termos de disco novo, quero estar pronto para trabalhar a partir de Dezembro.


Sentem que grande parte da atenção que vos foi inicialmente prestada adveio do facto em regime de autor, a expensas próprias?
N.G. – Sem dúvida que sim. A edição de autor tem esse lado bom. Capta a atenção e aproveita para transmitir: "Já agora oiçam a música". Se não tinha resultado com o "Digital Atmosphere", resultou com o "Vinyl", porque o próprio disco é diferente.
S.T. – Mas tenho a certeza que os 2 mil primeiros discos foram comprados por quem nos viu durante a "Digital Amosphere Tour". Lembro-me de, no concerto dos Massive Attack no Pavilhão Atlântico, andar a distribuir "flyers" do "Vinyl" e de um rapaz ter dito: "Eh pá, os Gift… Deixa lá ver o que é que vem daí". Tenho a e certeza de que foi comprar o disco.

As coisas poderiam ter sido diferentes se assim não fosse, se tivessem uma editora, ou a música que está lá dentro sobreviveria a qualquer coisa?
N.G. –
O "Vinyl" poderia ter tido um rumo totalmente diferente se não fosse a nossa persistência em relação ao single, em primeiro lugar. Em Dezembro, quando dissemos qual devia ser o single, toda a gente nos chamava loucos. «OK, do you want something simple?» ? São mas é parvos… A música é maquinal de todo, nunca vai entrar…". Apostámos e, finalmente, em Março entrou para as playlists nacionais. Creio que, se não fosse isso, a coisa poderia ter tido um rumo diferente. Talvez tivéssemos, em termos de digressão, ficado pelo mês de Maio.

Qual será o vosso futuro nessa matéria, agora que estão já muito mais familiarizados com os mecanismos da indústria?
N.G. – Acho que não fomos nós quem se adaptou à indústria, a indústria é que se adaptou a nós. Tenho a certeza que, por esses gabinetes dessas editoras todas, os Gift são personas non gratas.
S.T. – "Ainda continuamos a levar com o raio dos putos"…
N.G. – Tenho a certeza, pode ser que me engane, quando receberam a notícia do Disco de Prata, uma das reacções dos patrões das editoras foi chamar o A&R (N.R.: o responsável, numa editora, pelo sector Artistas & Reportório) e perguntar-lhe "Então o que é que andas aqui a fazer?". Isso para nós é lindo. Em termos de futuro, não sabemos bem ainda o que vai acontecer. Estamos a dar-nos muito bem com a BMG. Quer nós, quer eles estávamos novos nisto. Tanto para a gestão para a gestão como para o marketing da editora tinham chegado duas pessoas novas. Apesar de serem brasileiros, e de nós pensarmos que lá vinham mais Edibertos, sabem o que querem, sabiam quem eram os Gift. No próximo disco não sabemos. Neste momento, o que é certo é que estamos com a máquina mais do que montada e oleada. Poderíamos, obviamente, fazer outro disco em edição de autor, mas não sei. Vamos esperar para ver o que é que o estrangeiro vai dizer, se as portas se abrem ou se fecham. Consoante a reacção deste "Vinyl" lá for a, sabemos o que se vai fazer no próximo.

Sónia: Como lidas com a exposição a que o teu papel nos Gift te obriga? Sentes-te mais que uma vocalista, por ventura um líder, um símbolo, um objecto de desejo?
S.T –
É uma coisa que já encaro naturalmente. Nunca me sinto nervosa antes dos espectáculos, por exemplo… Pronto! É uma cruz que eu carrego… Às vezes, quando as coisas não correm bem chego a ficar com sentimentos de culpa por pensar que, se calhar, fui eu quem falhou, "Será que disse o que não devia, será que tive a atitude correcta?". Vou confessar mais uma faceta minha: antes dos espectáculos, pergunto sempre ao John o que devo dizer. E o John não me diz nada… Depois saio do concerto a pensar "Disse bem! Estive bem e os Gift saíram bem…". Eu sei que 60 por cento das pessoas estão, num concerto dos Gift, fixadas naquilo que estou a fazer. O que, ao fim e ao cabo, acaba por ser injusto. As atenções vêm todas para mim e, afinal, o mentor e o ditador é o Nuno. Quem devia aparecer nas capas das revistas é ele, quem devia dar entrevistas é ele. Eu identifico-me, num plano pessoal, com a Shirley Manson, dos Garbage. Quem está por trás daquilo tudo é o Butch Vig. Ela dá a cara e dá a voz. É assim que eu sinto, dou a cara e a voz. O Nuno é o Butch Vig.
N.G. – Mas ela assumiu uma personagem mais virada para o sexo, farta-se de mostrar as cuecas…
S.T. – Aí são caminhos completamente diferentes. Não é por eu mostrar as cuecas que chamo mais pessoas. E se chamar são, sinceramente, as que não me interessam. Aqui fique esclarecido: não vou mostrar as cuecas.


Por esta altura, já muita gente andará a questionar-se a propósito de uma eventual investida nos Gift no estrangeiro, na doação de canções para remisturas, entre outras manobras em voga. Qual é a vossa perspectiva em relação a isso?
N.G. –
Obviamente que não achamos que as músicas são estáticas. As músicas são mutantes e se houver boas pessoas, em quem nós confiemos para um trabalho de remistura, tudo bem. Em termos de estrangeiro, esse é e sempre será um objectivo dos Gift a curto prazo. Não faz sentido irmos tocar a Bragança e não irmos tocar a Espanha que é ali a poucos quilómetros. E se tocarmos em Espanha, que sentido faz não tocarmos em França? Está nos nossos horizontes ir lá para fora, a BMG acredita que é possível pôr os Gift lá fora… Estamos a partir no caminho de tentar, através de uma manobra de charme, trazer os "labels" internacionais da BMG ao concerto de Alcobaça (N.R.: que aconteceu no passado dia 18). Tentaremos aí cativá-los para que na convenção da BMG, a 28, 29 e 30 de Setembro, os Gift saiam com distribuição localizada em vários países. Acho que isso é possível em França, eles estão muito abertos… Aí sim, quando falas em remistura, acho que essa pode ser uma estratégia muito boa. Pode ser uma boa bicicleta para chegarmos lá a cima à montanha.


Baseado no vosso estado de espírito neste exacto momento, como seria uma canção dos Gift escrita agora, entre os dois?
N.G. –
Faria uma coisa que, numa parte, teria que ser bonita e introspectiva, e balanceada, com ar de esperança e vitória, numa segunda parte. Numa primeira parte, uma batida cool, uma coisa calma em que a voz da Sónia se enaltecesse; depois, tentar dar a volta e puxar aquilo para cima.
S.T. – Gosto muito da maneira como o Thom York (N.R.: vocalista dos Radiohead) canta e gosto muito da música em que ele colabora com os UNKLE. Teria que ser uma coisa desse género, com esse tipo de ambientes. Se calhar, o que escreveria não teria nada a ver com a forma como iria colocar a voz. A maneira como quereria cantar não teria, se calhar, nada que ver com o estado de espírito que sinto neste momento.


E qual é esse estado de espírito?
S.T –
É um estado mais…não diria agressivo… mais nervoso, mais animalesco. Seria criar uma simbiose entre o Thom York e os Beasty Boys. Se calhar, escreveria sobre o mesmo de sempre, que é o amor. Sou mulher, que hei-de fazer?


Pedro Gonçalves
in ON / O Independente - Setembro de 1999