Sunday, October 15, 2006

The Gift :: AM-FM... Entrevista

AINDA HÁ GENTE QUE NÃO PERCEBE O QUE FAZEMOS

Eles têm dois amores: um é íntimo, outro é extrovertido. Assim se define ‘AM/FM’, o novo álbum dos Gift que esta noite é apresentado no Teatro S. Luiz, em Lisboa. Sónia Tavares e John Gonçalves falam das novas motivações e do que (não) mudou.

Correio da Manhã – Dizem que este disco abre um novo ciclo na vida dos Gift. O que é que isso quer dizer?
John Gonçalves – Quer dizer que, apesar de os elementos do grupo serem os mesmo, a estética mudou. A banda evoluiu. Não renegamos aquilo que fizemos no álbum anterior (’Film’), mas achámos que era necessário abrir um novo ciclo a todos os níveis: de espectáculo, de discurso, de estética, de conceito...

– Nos álbuns anteriores os Gift denunciavam uma clara obsessão pela perfeição. Neste trabalho parecem mais obcecados com a arrumação. Sentiram necessidade de organizar as ideias?
J.G. – Acho que este disco é muito arquitectónico na sua forma, mas depois no conteúdo já não é tão perfeito. Os anteriores eram mais limpos, mais polidos. Este disco está muito bem organizado, no sentido em que está bem definido o que é cada uma das coisas, mas depois, no conteúdo intrinseco a cada um deles, está mais sujo e mais (positivamente) imperfeito.
Sónia Tavares – É engraçado falar nisto, porque este trabalho também pode ser entendido como um desarrumar de ideias. É um álbum mais heterogéneo. Para sermos justos, secalhar até devíamos ter separado estas canções em mais do que dois discos. É verdade que assumimos dois rumos diferentes, mas dentro de cada um destes discos ainda estão mais coisas por desarrumar e arrumar.

– E um disco é ‘audível’ sem o outro?
S.T. – Não. Estes dois discos estão arrumados por ideias: um é mais íntimo e o outro é mais extrovertido e espontâneo. Isso quer dizer que o íntimo não consegue viver sem o outro lado porque o lado melancólico, de estar em casa a ouvir de ‘ti para ti’ não faz sentido sem o de ‘ti para os outros’. Ninguém passa a vida em casa sozinho, da mesma forma que ninguém passa a vida na rua a socializar.Tem de haver as duas partes.

– É, portanto, uma alegoria à própria vida, porque há sempre o outro lado das coisas...
J.G. – Extactamente. Aliás, se a tecnologia o permitisse, gostávamos era de ter lançado um disco com dois lados. Mas ainda ninguém inventou esse sistema [risos].

– Como é que os Gift se sentem chegados a este terceiro disco, como autores, compositores e intérpretes?
J.G. – A palavra certa é evoluídos. Estamos muito mais evoluídos na contenção e naquilo que são os nossos objectivos estéticos, nas letras e por aí fora. No ‘Film’ tinha-se falado muito na maturidade e na afirmação. Agora, acho que podemos falar em evolução que quer dizer que continuamos empenhados em provar que isto não é uma coisa passageira.

– Essa evolução é sinónimo de descontracção?
J.G. – Não se essa descontracção for sinónimo de preguiça.
S.T. – Há sempre aquelas pressões que nos impomos a nós próprios, mas, desta vez, aconteceu-nos uma coisa engraçada: sobrou-nos tempo. Houve uma altura em que fomos dez dias para Madrid e, no último, quando demos por nós, estávamos livres às quatro da tarde [risos].

– E tanto tempo juntos não gera discórdias?
J.G. – Claro que sim. Zangamo-nos muito, mas também focamos muito.
S.T. – Geralmente as discussões passam rápido porque todos nós sabemos que é isto que queremos fazer e que não vale a pena alimentar discórdias. Houve alturas em que uns estavam mais com o pé na terra e outros com o pé no barco, mas as coisas foram sempre ultrapassadas.

– Nestes dois últimos anos andaram em digressões constantes pelos EUA. Quem é o vosso público lá fora?
J.G. – Fundamentalmente, é um público culto no sentido artístico do termo e que está muito bem informado do que é música europeia...

– ... Uma minoria portanto!
J.G. – Nem por isso, embora reconheça que os grandes centros urbanos estão mais abertos para ouvir os Gift. E, depois, as rádios universitárias também passam muito a nossa música.

– Hoje dá-vos algum gozo especial olhar para as pessoas que, no início, não acreditavam no grupo?
J.G. – Não. Hoje somos amigos de todos eles. Na altura, houve muita gente distraída, mas, se calhar, ainda bem. A nível de editoras, por exemplo, nenhuma nos pode dar aquilo que nos damos a nós próprios.
S.T. – O mais curioso é que ainda há muita gente que não percebe aquilo que andamos a fazer...

PERFIL
Quando, em 1997, os Gift começaram, por sua própria iniciativa, a organizar concertos e a vender discos à porta das salas de espectáculos, muitos não quiseram sequer dar-se ao trabalho de pensar que o grupo, num formato inédito para o mercado português, até poderia funcionar. Contra tudo e todos, Nuno e John Gonçalves, Sónia Tavares e Miguel Ribeiro, fundaram o La Folie Records e fizeram eles mesmos o que ninguém os queria ajudar a fazer. E ainda bem. ‘Digital Atmosphere’, ‘Vinyl’, ‘Film’ e, agora, ‘AM/FM’ falam por si.

Miguel Azevedo
in Correio da Manhã - 2004-12-06