Sunday, October 15, 2006

The Gift :: AM-FM... Entrevista

THE GIFT
Toda a Verdade

Têm uma natureza diferente - "AM" mais tranquilo, "FM" mais musculado - mas climas digitais e uma sensibilidade pop semelhantes. Depois da da estreia com "Digital Atmosphere" (1997), da aclamação com "Vynil" (1999) e da divisão de opiniões em "Film" (2001), regressam com o seu projecto mais ambicioso e aquele onde se expõem mais - um duplo CD acompanhado por um DVD que inclui um documentário e um "making-of". Quase dez anos depois de se terem formado em Alcobaça os quatro The Gift (Sónia Tavares, Nuno e John Gonçalves e Miguel Ribeiro) continuam com a mesma determinação de sempre. "Já não temos idade para medos", declaram.

No diário das gravações falam de dúvidas durante o processo criativo. Apesar das hesitações, nesse contexto, serem normais, este foi o álbum mais difícil dos The Gift?
Nuno Gonçalves -
Não, mas nas misturas existiram dúvidas. Até aí estávamos satisfeitos, mas quando chegámos ao fim foi como se não nos tivesse surpreendido. É uma coisa sensorial. Nessa altura, resolvemos voltar a misturá-lo.
Sónia Tavares - Em termos sonoros não tinha a qualidade que pretendíamos, mas tudo o resto estava lá.


Como é que partiram para este disco: dialogaram sobre o rumo a seguir ou as coisas processaram-se intuitivamente?
N.G. -
Como sempre, tem que existir vontade de dizer algo novo e um conceito, pré-definido ou não. Em termos de funcionamento, enquanto compositores, limitamo-nos a sentir qual o momento para editar. Não dizemos: "para a semana vamos compor um disco novo". Em Portugal, há quem utilize o método "9 to 5" e edite não sei quantos discos por ano. Não funcionamos assim. Perdemos tempo com cada disco porque é algo de importante nas nossas vidas. Em 10 anos de carreira, cada disco marca o crescimento da banda e de cada um de nós.

Já afirmaram [Y de 12 Novembro] que quando estavam a compor as canções seguiram direcções diversas. Foi esse factor que conduziu à opção pelo álbum duplo?
N.G. - Sim. As canções tinham vida própria e era difícil encaixá-las num eixo. Tinham uma atitude diferente e identificámo-las como encaixando na ideia "dentro" e "fora" de casa, com um lado introspectivo e outro mais extrovertido. O nome acabou por surgir quando nos apercebemos que o último tema do "Film" se chamava "AM + FM".
S.T.- O "Film" era tão heterogéneo que houve pessoas que não o compreenderam. O facto de este disco ser mais organizado, com duas orientações distintas, ajuda a defini-lo melhor .
Mas também podem ser acusados de indefinição.
S.T. - Um não faz sentido sem o outro. Como o dia não faz sentido sem a noite. É um "cliché" mas tem um fundo de verdade.
N.G. - Os dois juntos acabam por originar um muito bom.
John Gonçalves - Só no fim é que se definiu que cada disco deveria ter um nome. Antes não tínhamos noção se iria ser um disco com dois lados.

O lado "FM", mais extrovertido, como dizem, foi pensado para funcionar ao vivo?
N.G. - Depende do concerto. Quando partimos para uma digressão não sabemos que temas vamos tocar. Varia com a cidade e o público. O "FM" poderá fazer mais sentido num festival de Verão, mas o "AM" poderá fazer mais sentido no Teatro S. Luís, por exemplo. Mas, obviamente, o "FM" é mais direccionado para palco, até porque muitas das músicas cresceram em concertos, como "Red light", "You know" ou "No answer".
J.G. - Não compusemos a pensar no palco, mas mesmo as músicas mais calmas quando tocadas ao vivo ganhavam energia e achámos que ela devia estar tanto no "AM" como no "FM".
O centro da vossa música continua a ser a estrutura clássica da canção, mas aquilo que envolve os temas é mais trabalhado. É o vosso disco com mais detalhes.
N.G. - O objecto de trabalho dos outros discos também era diferente: no "Vinyl" a ideia era transparecer o primeiro impacto dos temas e no "Film" a grandiosidade das canções, dos arranjos e aquele som épico. Aí desprezámos o lado electrónico. Neste disco, não; quisemos ir aos sons microscópicos e fazer um disco de estética coerente. Esses sons são muito trabalhados, mas o facto de não haver tanta carga sonora por trás permitiu que existisse mais espaço. É um disco de silêncios, sobretudo da voz da Sónia. Existiu uma tentativa de pausar as canções e toda essa estrutura foi pensada para atribuir destaque aos detalhes.

Para além da co-produção do Will O'Donovan não há colaborações exteriores ao grupo. É o disco onde se assumem mais?
J.G.- Focámo-nos em nós, mas nunca precisámos de muletas e mesmo no futuro se colaborarmos com alguém será por razões artísticas e não para termos um autocolante na capa a mencionar as colaborações. Neste caso, definimos que ou tínhamos as pessoas que desejávamos [Múm, Four Tet e Wayne Coyne dos Flaming Lips] ou então mais valia assumir o disco por inteiro. Foi o que aconteceu. Não nos escondemos por trás de produtores, colaboradores ou nomes fortes.
N.G - Foi um desafio assumir as programações. Tínhamo-lo feito nos outros, mas não tínhamos ficado inteiramente satisfeitos no último.
J.G. - Nota-se mais sentido colectivo. O "Film" é mais planante. Aqui estamos mais juntos em todas as músicas.


As letras também estão diferentes. Mais cuidadas, diria.
N.G. -
Por alguma razão é a primeira vez que as letras aparecem no disco. No "Film" as prioridades eram outras. Era a dimensão épica e a interpretação da Sónia que interessava. Era um disco de personagens, onde mais importante do que dizia era a forma como o fazia. Neste disco é fundamental o que se diz para perceber do que são feitas as canções.

Há uma canção "escondida" vocalizada em português, "Fácil de entender", o que é inédito em vocês. Foi por isso que a ocultaram?
N.G. -
Não. É a única que consegue ter o melhor do "AM" e do "FM" juntos. Estava em terreno neutro e foi por isso que optámos por ocultá-la. É íntima, com mensagem forte, introspectiva, e depois consegue ter uma vertente pop com refrão. Foi a primeira vez que começámos a fazer a música a partir da letra e da melodia de voz. É das músicas mais fortes do disco.
S.T. - Acaba por ser uma surpresa. Um brinde. Um extra.
N.G. - O português bem cantado é eficaz. No estrangeiro, perguntam-nos se nós cantamos em inglês para abrirmos portas lá fora, e nós respondemos que não. Aliás, se o fizéssemos em português o factor "exótico", na moda, poderia funcionar melhor.


Então qual é a verdadeira razão para optarem pelo inglês?
N.G. -
Desde a infância a maior parte da música que oiço é anglo-saxónica.
J.G. - Mas não fechamos portas ao português.
N.G. - A nossa música é um todo. Se tivéssemos nascido em Nova Iorque seria diferente. Mas há alguma portugalidade na nossa música, nem que seja ao nível de sentimentos como a melancolia e a esperança.
S.T. - Incrivelmente, a minha mãe diz que pareço a Amália a cantar... [risos] Por causa da melancolia, dos olhos fechados...
J.G. - E de dizeres, no fim, obrigaadoo!... [risos]


Nos dois últimos anos a música em Portugal tem mostrado vitalidade, não só ao nível da pop para o grande público, como dos canais alternativos. Mas há um divórcio com o mercado, não vos parece?
N.G. - Através do Clinic [espaço nocturno em Alcobaça gerido pelos Gift] sentimo-nos próximos dessa vaga embora em Portugal ninguém saiba bem o que é isso do "underground" porque o país é "underground"... [risos] Temos tido contacto com essas novas gerações e em termos de criatividade há muitas bandas interessantes. Mas o mercado está castrador. Parece-me que, depois dos Gift, também começou a existir menos medo do "do it yourself". Hoje há mais bandas, mais exposição e uma rádio que passa música portuguesa [Antena 3], mas também é a única...
J.G. - O interessante é a diversidade. O movimento aqui é muito aberto, não existe aquela ideia do "som islandês" ou do "som norueguês". O hip-hop, o rock, a electrónica, o pop electrónico, etc, estão bem. Mas por muito criativas que as pessoas sejam, quando não há condições para viverem do seu trabalho, dispersam-se. O meu medo é que não se aproveite esta geração. É importante existirem condições para as pessoas progredirem como aconteceu connosco nos últimos dez anos.


Não lançam regularmente álbuns nem têm projectos paralelos. Conseguem viver exclusivamente da música neste momento?
J.G. - Se tivéssemos um emprego fixo estaríamos melhor, mas isso não significa que não estejamos felizes. Trabalha-se no Verão para garantir o Inverno. Não temos projectos paralelos e não lançamos discos todos os anos. Funcionamos durante ano e meio de forma intensa e gostamos de estar um longo período sem aparecer. Esses anos são piores, mas foi essa a nossa opção.


Já trabalham juntos há anos. Como é a vossa relação?
J.G. - É boa, mas não é fácil. Eu e o meu irmão temos características semelhantes... O facto de a Sónia ser a única rapariga também não é fácil...
S.T. - São quatro cabeças a pensar, mas somos unidos e temos as mesmas metas.
N.G. - Há discussões, mas faz parte.
J.G. - Também não me agrada nada aquelas bandas muito unidas, sempre prontos para sair à noite juntos...
N.G. - E quando passam os Joy Division dançam todos... [risos]
S.T. - Somos focados. Temos a nossa vida, mas objectivos comuns.
N.G. - Hás vezes chocamos, mas procura-se o melhor caminho para seguir em frente.

Em Portugal, para além do circuito de concertos, não há muitas alternativas para grupos da vossa dimensão exporem a música. Vão a programas como o Herman SIC?
J.G. -
Sim, mas tentamos não fazer tudo. Temos que viver com a TV que existe. É um problema de equilíbrio. Acho que acabamos por dar alguma credibilidade aos programas... [risos].
N.G. - Há a ideia que quando uma banda passa muitas vezes na rádio ou na TV já não presta, mas a música é sempre igual. Se já a ouviste muitas vezes podes não te emocionar como na primeira, mas não deixa de ser boa por isso. Obviamente não vamos a todos os programas, mas se até os Radiohead quando vieram a Portugal na altura do "OK Computer" estavam marcados para o Big Show Sic! Não foram porque demoraram mais tempo do que o previsto no ensaio de som. No DVD [que acompanha o CD] está uma cena fantástica quando fomos à TV regional da Andaluzia. Às tantas eu a Sónia olhámos um para outro e interrogámo-nos sobre o que estávamos ali a fazer. Só tínhamos vontade de rir. Acontece, mas tentamos controlar esse tipo de coisas. Quando entramos na televisão tentamos perceber se podemos levar as nossas luzes e as nossas coreografias. Tentamos controlar ao máximo o processo.
S.T. - Não temos assim tantos programas que nos possamos dar ao luxo de não ir aqueles que não são completamente medíocres. É verdade que a música nunca muda - e não é por passar neste ou naquele programa que perde qualidade - mas é necessário entrarmos na casa das pessoas que não nos conhecem, que não lêem jornais, que não estão atentas.
J.G. - O que é o "Top Of The Pops"? É uma série de adolescentes a dançar em frente a um palco onde estão bandas a tocar em "playback". E, no entanto, todas as bandas passaram por lá. Não há nada a fazer. Agora, é verdade que existe preconceito de algum público em relação a isso.
Quando surgiram valorizava-se muito a vossa energia, o lado "faça-você-mesmo". Nos últimos anos o vosso público aumentou, mas também existem mais anticorpos. Sentem isso?
J.G. - Claramente! E a resposta, em primeiro lugar, é este disco. Se alguém acha que há cedências que oiça o disco com calma. No resto a nossa atitude é a mesma desde o primeiro disco. Estamos focados nos nossos objectivos, tentamos controlar a nossa carreira e gostamos de garantir que o espectáculo de Mangualde tenha a mesma qualidade do de Lisboa. Temos a mesma atitude há dez anos.
N.G. - As diferenças que existem foram conquistadas. Não tinha nenhum prazer em sair de casa às 3 da manhã para colar cartazes, porque não tínhamos estrutura.
S.G. - As pessoas que criaram anticorpos em relação aos Gift são as mesmas que têm em casa discos dos Massive Attack, dos Radiohead ou da Björk, que vendem milhares de discos. Por que é que os Gift têm que ser malvistos? Por gostarmos de partilhar a música com as pessoas? Mas é esse o objectivo! Se não tínhamos ficado na garagem.
J.G. - Estamos a seguir o caminho que escolhemos. A nossa editora, a La Folie, é, para nós, a melhor do mundo. Estamos nela por opção.
S.G. - Já estou como o outro: não importa que falem bem ou mal, importa que falem... [risos]
N.G. - Às vezes até ouvimos coisas do género: ah! estão sempre a armar-se em "coitadinhos"! Ou "o teu pai é rico e paga os discos!".
S.G. - Sim, somos "coitadinhos"! Fartamo-nos de trabalhar!

Que história é essa dos "coitadinhos"?
N.G. -
Dizia-se que era o nosso pai que pagava os discos todos e tal...
J.G. - O meu pai, imagine-se, que nem quer ouvir falar nos nossos investimentos. "Quanto é que pagaram ao produtor? O quê? São completamente malucos"... [risos] O meu pai não tem dinheiro, nem quer investir na banda. Fica é satisfeito de ouvir a música.
S.T. - As pessoas não têm noção do que dizem. Não sabem. Nunca estiveram deste lado. Às vezes sou confrontada com coisas incríveis.
J.G. - Há nomes internacionais como Beck, Air, Björk ou Radiohead que têm esse problema: têm um pé no "mainstream" mas também são para minorias. À nossa escala, temos o mesmo problema. Quanto mais crescemos, mas anticorpos vamos criando, mas há mais pessoas a gostar de nós. No fim de contas, temos é que ser honestos.
S.T. - Mas irrita-me que quanto mais gente existe a gostar de ti, mais pessoas existem a dizer que não vales nada.
N.G. - Isso é muito anos 80, é próprio do espírito "independente": eu quero ser sempre mais "independente" do que tu. Lembras-te quando umas amigas nossas começaram a ouvir Pulp no carro? Tu deixaste de gostar deles... [risos]
S.T. - Passei-me! Os Pulp eram meus! Eram meus... [risos] Quando andava na escola lembro-me de uma amiga minha me aparecer com uma cassete dos Joy Division e eu a pensar: "O que é isto? Quem é esta para andar a ouvir Joy Division?" [risos]
N.G. - Quem gosta de música tem sempre dessas paranóias!

Para além de música, do que é que vocês gostam?
J.G. - Cinema. Futebol.
N.G. - Passo horas a ver TV. É uma fotografia diária do que se passa à minha volta.
S.T. - Em Alcobaça temos que ir quase ao estrangeiro para ir ao cinema. Pelo menos, 30 km. Então habituei-me a ler sobre os filmes, mas não os vejo... [risos] É inacreditável! Quando alguém me fala de um filme eu digo logo: "ah! Esse é aquele daquela história muito engraçada!" ... [risos]


O CD vem acompanhado de um DVD, com um documentário e um "making of" do disco. O que quiseram mostrar com essas imagens?
J.G. - O documentário é consequência de levarmos uma câmara connosco sempre que vamos para o estrangeiro, mas não tem uma linha. Não é um DVD promocional. É uma coisa muito nua e crua que mostra um pouco da Espanha, EUA e Venezuela. É o outro lado dessas viagens. Não há nenhum "glamour" e quisemos expor isso: as zangas, o sermos roubados no final de um espectáculo com alguém a dizer-nos que estavam lá não sei quantas pessoas e nós a ver que estavam muito mais. Não sei se vai vender mais por isso. Acho que não.
N.G. - É mais uma forma de depois de ouvirem o disco e o terem avaliado saberem o que andámos a fazer e quem somos. Quem somos? Bem, por acaso eu saio um pouco maltratado do filme nesse aspecto.
J.G. - Por acaso, é verdade.
S.T. - Bem, por acaso eu também.
J.G. - Mas lá está, não cortámos nada.
N.G. - Não valia a pena. Já não temos idade para termos medos.


Vítor Belanciano
in Y/Público - 26 de Novembro de 2004