Sunday, October 15, 2006

The Gift :: AM-FM

A Toque de Caixa
A HORA DAS CANÇÕES

São poucos, para mal de nós todos, os grupos portugueses que aplicam tanto rigor e tanto cuidado na construção de uma carreira como os bem amados The Gift.

Posta a questão desta forma, quem não os conheça pode construir um retrato cerebral, calculista, frio, do quarteto que Alcobaça viu nascer e crescer – e não é nada disso. Desde ‘Digital Atmosphere’, edição de autor, com circulação limitada e hoje privilégio de coleccionador, aquilo a que temos assistido é a passos de gigante (basta comparar a relativa ingenuidade de ‘Vinyl’ com o conceito de ‘Film’, seguindo daí para o ambicioso novo álbum), entremeados com paragens de maturação e trabalho internos. Nesta linha de raciocínio, posso ir já direito à conclusão: ‘AM-FM’, à venda amanhã, é o melhor, mais completo e mais aberto dos álbuns até hoje rubricados pela banda.

Desde logo porque não perde o sentido de aventura que lhes serve de característica: ao pop (que se desdobra desde os temas atmosféricos à mais pura soul), há uma insistência saudável no risco, sensível nas instrumentações escolhidas, que vão desde cargas com naipe de metais a suportes alicerçados na secção de cordas (London Session Orchestra), passando por harpa, trompa, contrabaixo, ‘wah-wah’ e sapateado (!).

Tudo em nome de uma construção de canções - que, ao longo de ‘AM-FM’, predominam sobre os ambientes - em que se navega entre o imaculado e o rugoso, entre o estado de graça e o ‘noise’, entre o quase solene e o dançável, entre a complexidade justa e a simplicidade envolvente. O resultado global é verdadeiramente magnético, não deixando que quaisquer outras formas de modernidade possam pedir meças ao que aqui se pratica. E são mais de 78 minutos, divididos por dois discos.

Por mim, começaria sempre por ‘FM’ (o segundo CD), com ‘Driving You Slow’ a assumir-se, ao primeiro momento, como a catapulta que pode ajudar a fixar novos adeptos - é uma canção de nível absoluto, um dos pontos mais altos para se perceber o âmbito vocal (e interpretativo) de Sónia Tavares, também em crescimento uniformemente acelerado. O que vale para a continuação com a soul actualizada de ‘11.33’, o tom obsessivo de ‘Cube’, a linearidade aparente de ‘Music’ e por aí fora.

Sem percalços, pode passar-se para ‘AM’, onde ganham peso ‘Are You Near?’ (rítmica muito anos 80), ‘Wallpaper’ (tangente à perfeição, no arranjo e na voz), ‘Elisa’ (é impressão minha ou evoca, sem copiar, o universo Portishead?) e ‘Bonita’ (’loop’ bem montado para deixar correr a melodia e – outra vez – a voz).

Há muito por onde escolher. Na certeza de que este é um daqueles registos que precisa de uso, de descodificação de pormenores, de retenção do essencial. Para ser moderno, são precisas bases e ideias, trabalho e inspiração. No universo The Gift, nada disso peca por defeito: estendem-se as fronteiras da pop, acrescenta-se a lista das canções de eleição, ganha-se o ‘dois em um’: inteligência e sensibilidade. E já nem falo do bom gosto

João Gobern
in Correio da Manhã - 2004-11-28